segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Febre - Introdução à Parte II, e a Parte II propriamente dita

Essa é a segunda e penúltima parte do conto "Febre". Se você for grande fã dos filmes do Christopher Nolan ou outros tipos de narrativa não-linear, acho que não ficará tão chateado assim em ler a Segunda Parte antes da Primeira. Mas eu aviso que esse conto não foi escrito pelo Jonathan Nolan e, portanto, foi pensado de forma linear. Caso você queira respeitar a ordem que o autor deu às coisas, clique aqui para ler a Parte I.

Bem... Para vocês que já leram o início, terminamos quando o nosso protagonista estava relatando os comportamentos que deveria evitar para que se recuperasse da sua "Febre do Cubículo", o que diabos seja isso! Aliás, para vocês que já leram o início, eu não preciso ficar contextualizando porra nenhuma nada, porque imagino que vocês tenham uma boa memória. Portanto, pulemos logo à Parte II:

Febre - Parte II



Ah! Chega disso! Todas essas coisas, todos esses pequenos vícios retroalimentam minha insatisfação, e essa é a raiz do meu problema. Não é o Rui, da seção de esportes, e sua conversinha de fim de semana sobre igrejas e sanduíches defumados raros, e viagens com a família. Nem a Vanessa, da seção de economia, e suas fórmulas mágicas para enriquecer, aplicando seu dinheiro nas empresas certas. Não é a dona Jurema (Jussara? Jurema?) que sempre faz o cafezinho adoçado e antidiabético demais. Claro que eles têm a parcela deles de culpa. Mas não é por conta deles que eu não consigo me concentrar. Não é por conta deles que eu não estou conseguindo escrever essa porra dessa crônica de despedida. A culpa disso é minha. Eu sofro de stress pós-traumático, e o trauma em questão é a vida. A culpa disso é minha, e por mais que seja tentador culpar a minha insistente falta de sorte (lembro-me da fala de um filme: “Toda vez que eu tenho algum tipo de sorte, é má-sorte”), a minha visão das coisas não me ajuda muito a me animar. Eu tenho um amigo escritor que tem uma visão muito agradável do mundo:
“O mundo é uma total porcaria!”, ele diz, “Com o caos espreitando em todos os cantos, te oferecendo o bom e o ruim, te excitando e te deprimindo, te fazendo sangrar e orgasmar. Não dá para esperar nada do mundo, não dá para esperar deus do mundo, não dá para esperar alegria ou tristeza do mundo. A gente pulsa nessa poça de probabilidades imprevisíveis, nós mesmos sendo um monte de impossibilidadezinhas respirantes. Só que a gente usa gravatas e reclama do ar-condicionado. Nenhuma vida foi prevista para acontecer nesse cosmo, e a pouca que acontece nos planetas por aí acaba sendo retribuída com um monte de ironia. Você vê, cara? Isso é que é um mundo maravilhoso! Quando você pára de cobrar que ele te faça feliz, você descobre o que é, de verdade, ser feliz. É aí que reside toda a magia, e é por isso que eu amo esse mundo!”
Eu penso de uma forma razoavelmente parecida. Mas enquanto aquele escritor-cervejeiro-maluco pensa que o caos faz o mundo ser algo maravilhoso, eu me deprimo ainda mais. E acabo, mesmo que inconscientemente, esperando algo que o mundo não tem a obrigação de me dar. Criando expectativas para acompanhar as situações tímidas, os acasos fortuitos, as pessoas randomicamente dispostas no dia-a-dia. Acho que todos traçamos alguns padrões sobre como os outros deveriam agir, não? Ou seria eu um tipo estranho de gente, aquele tipo de gente fadada a uma existência infeliz, porque impõe ao mundo a responsabilidade de felicitá-lo? Meu amigo sabe que não se deve esperar nada dos outros, ou do acaso. Ele não espera, e é feliz. Eu, por outro lado, dotado dessa mesma certeza, escolho acortinar minhas esperanças com a estupidez obstinada de quem aposta em um cavalo sem pernas. Talvez seja essa a diferença entre o cronista e o escritor. O psicólogo do convênio do Jornal diria que existe uma grande diferença. Diria que eu não estou tendo “bloqueio de escritor”, eu estou tendo uma “dificuldade de cronista” que é, claro, um dos desdobramentos da minha “febre do cubículo”. É o que me fez perder mais de uma hora hoje cedo, lendo notícias online e pressionando F5 na minha página de e-mails à espera de uma salvação ou uma epifania. E é o que me fez ter a ideia de digitar esse bando de baboseiras para, pelo menos, parecer que estou trabalhando em alguma coisa. “O próprio conceito de cronista”, diria ele, “é primitivamente diferente do conceito de escritor. A sociedade não os encara da mesma forma, pois eles servem a musas completamente distintas. E, logo, a sua mente não os encara da mesma forma. E é por isso que a raiz empírica do seu problema está em outro ponto. Não podemos encarar isso como um simples ‘bloqueio de escritor’. Esse foi o erro de três gerações da psicologia, e cometer esse erro novamente seria negar mais de cinquenta anos de evolução. Creio, porém, que eu não vá ter, sozinho, a base para chegar ao motivo do seu problema. Mas é claro que ele tem a ver com o seu episodiozinho de ‘febre do cubículo’, não é mesmo, campeão? Hehe! Mas conte-me um pouco: Com o que você sonhou hoje?”.
Eu não me lembro dos meus sonhos há semanas. Mas nesse momento, de frente para o meu computador, os olhos tão objetivamente abertos quanto é possível, eu sonho. Sonho que me levanto e saio de meu cubículo, o meu tão amaldiçoado cubículo, tendo em vista os conceitos mais modernos da ciência do estudo da alma. Sonho que passo pelos mini-setores onde as pessoas discutem o comportamento dos filhos umas das outras, e as melhores raças de cachorro, e o que fazer com a happy hour de sexta-feira e o que comprar para bajular os superiores em seus respectivos aniversários. Sonho que alcanço uma cafeteira, que é diferente da cafeteira rotineira, pois está afastada de mim pela distância infinita entre a realidade e o hipotético. É diferente da cafeteira rotineira porque foi outra pessoa que a preencheu de café ou, melhor ainda, porque a Dona Jurema-Jussara-Jurema acaba de ter um acesso de um distúrbio psicológico que nada tem a ver com a “febre do cubículo” (apesar de também envolver uma série de mazelas única e completamente relacionadas a problemas que acontecem em um escritório). Sua ainda indigente síndrome a levou a preparar o café com alguns quilos a menos de açúcar refinado, numa tentativa falha de demonstrar o ódio que ela vinha alimentando há tantos meses. E então a própria doença mostra-se como a cura de si mesma, pois a Dona Jurema começaria a se sentir muito amada no serviço, tão logo os elogios fossem feitos ao café, e o Jonas da contabilidade comentasse que tomou apenas um quarto da sua dose regular de insulina. No meu sonho, todos ficam felizes. O meu café, adoçado a um nível apenas próximo da letalidade, me inspira a escrever não apenas uma crônica, mas três. E ele continua fazendo efeito ao longo de semanas, e eu termino a minha ficção científica, e começo um romance épico sobre índios, e uma alegoria filosófica sobre uma padaria na Florença do século XVIII. E então, graças ao café do sonho, eu ganho o Pulitzer, e morro feliz, por saber que apenas o veículo de minhas palavras morria, mas não os textos em si. E em meu funeral, meu corpo morto e destituído de sentidos seria testemunha dos olhares tristes e saudosos de pelo menos três ex-mulheres, e pelo menos três ex-amantes, e pelo menos cinco filhos. No meu sonho, eu venço a vida. No meu sonho, o caos torna-se meu amigo graças a um enigma envolvendo autoconfiança e cafeína. No meu sonho é o meu amigo escritor que comenta sobre a minha visão de mundo.
Na minha realidade, porém, eu sei que vou me levantar, deixar esse cubículo, andar minha finita caminhada até a cafeteira, durante a qual terei de ouvir as conversas sobre futebol e piqueniques e pet-shops, para ser recompensado apenas com o mesmo café-homicídio-culposo de sempre. E nada mais. Volto a você em breve, minha crônica-morta-viva que não será publicada jamais.

*************************************************************************************************
(Literalmente, pausa para o café. Literalmente, ela demorará até amanhã para vocês que estão lendo no Blog :D Não percam a emocionante e controversa conclusão amanhã, nesse mesmo blog -- Se alguém não hackear meu computador.)

P.S.: Quem de vocês conseguiu pegar o "cameo" de mim mesmo nesse conto?


(a Parte III, contendo a emocionante conclusão na qual os aliens invadem a Terra e possuem as mentes de todo mundo no Jornal já está disponível aqui. Confira!)

Nenhum comentário:

Postar um comentário